A mudança de Paradigma: Das indústrias Culturais para as Indústrias Criativas

Para definir políticas culturais urge, antes de mais, rasgar conceitos. Deixar de lado tudo aquilo que achamos que a cultura é, e representa, para começar a olhar a actividade cultural e criativa de outra forma, mais abrangente e com maior capacidade de gerar riqueza, incluindo na definição de “actividade cultural” algumas actividades que, até agora, vimos considerando como marginais à mesma.
Poderíamos começar citando, por exemplo, Albert Camus, quando diz que “sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro”.
Estaria correcta esta frase de Camus? Na essência sim, porém, o tempo ensinou-nos que é incompleta. Que lhe falta então?
- sente a ausência de uma premissa essencial. Porque hoje a cultura não se esgota nas classificações clássicas de cultura erudita, ou cultivada, de subculturas dominadas ou emergentes (local de vivência, por excelência, do espaço associativo e do espaço tutelado), de espaço colectivo ou espaço doméstico ou de indústrias culturais.
Hoje, o conceito dominante é o das Indústrias Criativas que incluem, para além das manifestações culturais que possam estar incluídas nas classificações supra-citadas, o negócio e a tecnologia.
Segundo o britânico Department for Culture, Media and Sport, Indústrias Criativas são aquelas que têm a sua origem na criatividade, competências e talento individual, com potencial para a criação de trabalho e riqueza através da geração e exploração da propriedade intelectual.
O conceito, criado e popularizado pelo norte-americano Richard Florida, nasceu há cerca de 15 anos, após a observação de que o conceito Indústrias Culturais estava ultrapassado fruto do avanço das novas tecnologias de comunicação e de informação e da entrada em cena, de forma absoluta, da Internet.
O que são as industrias criativas: A Organização das Nações Unidas, no seu Creative Economy Report, documento de 2008 diz que:
“No mundo contemporâneo está a surgir um novo paradigma de desenvolvimento, que liga a economia e a cultura, envolvendo aspectos económicos, culturais, tecnológicas e sociais do desenvolvimento nos níveis macro e micro. Um facto central para o novo paradigma é que o conhecimento, a criatividade e o acesso à informação são cada vez mais reconhecidos como potentes motores impulsionando o crescimento económico e promovendo o desenvolvimento num mundo globalizado”.
O desenvolvimento das indústrias criativas e da criatividade, vista neste contexto como capacidade de formulação de novas ideias e respectiva aplicação para a produção de obras de arte, produtos culturais, produtos tecnológicos ou científicos.
Podemos mesmo afirmar, claramente, que as regiões que terão futuro serão aquelas que souberem enfrentar o desafio da globalização, aumentando o seu potencial criativo de molde a oferecerem produtos distintivos e serviços criativos ao mercado mundial, reposicionando-se na cadeia de produção mundial, atraindo e retendo talento e capital para um desenvolvimento económico sustentável.
Voltando ao Department for Culture, Media and Sport, poderemos utilizar uma listagem feita pelos nossos amigos britânicos, que define como industrias criativas:
- Publicidade;
- Arquitectura;
- Artes visuais;
- Antiguidades;
- Artesanato e joalharia;
- Design;
- Design de moda;
- Cinema, vídeo e audiovisual;
- Software educacional e de entretenimento;
- Música;
- Artes performativas;
- Edição;
- Software e Serviços de Informática;
- Televisão e rádio;
Simplificando, indústrias criativas incluem não só as práticas culturais e as manifestações artísticas, sendo antes um interface, ou um cluster interdisciplinar que une as primeiras à tecnologia e aos serviços criativos. São, em resumo, baseadas em indivíduos com talento criativo, aliados a gestores de recursos económicos e tecnológicos, gerando produtos vendáveis cujo valor económico assenta nas suas propriedades “culturais” ou “intelectuais”.
O desenvolvimento de uma economia criativa não se trata, perdoe-me o simplismo, de ensinar gente a pintar, tocar, representar ou escrever repetindo velhas fórmulas, trata-se isso sim de ensinar gente a pensar, nas mais diversas áreas do conhecimento, promovendo a intercomunicação entre as mais diversas instituições públicas e privadas;
Perguntam-me o que tem esta explanação teórica a ver com as políticas culturais na Madeira? É simples: - definir uma política cultural sem olhar para os novos paradigmas de análise das relações económicas, sociais e políticas e sem perceber que as “Industrias Culturais” foram substituídas pelas Indústrias Criativas, sem perceber que a Madeira tem tudo a ganhar se aplicar este novo paradigma é como imaginar um hipopótamo a fazer patinagem artística! É inviável, é impraticável, é irresponsável!
Vejamos o que se passa entre nós:
- A política cultural tem sido, segundo o nosso prisma de análise, um belo e rechonchudo hipopótamo a tentar fazer patinagem artística ao som do bolero de Ravel. Se não vejamos:
- Não existe, ao que se saiba, qualquer incentivo às indústrias criativas para além dos incentivos comunitários previstos no âmbito da estratégia 2020 da Comissão Europeia; Não se devem confundir incentivos às indústrias criativas com prémios ao empreendedorismo ou coisa que o valha!
A título de exemplo, contam-se pelos dedos de uma mão os eventos culturais na Região que são apoiados por fundos europeus, mesmo havendo verbas disponíveis para o efeito.
- As entidades públicas que promovem a cultura continuam fechadas em redomas, comunicando pouco entre si. O maior exemplo é a DRAC e a Câmara Municipal do Funchal, as duas entidades com maior responsabilidade na matéria e cujo grau de intercomunicação pode ser aferido pela marcação simultânea de dois festivais musicais;
- O ensino artístico, quer o especializado – Conservatório, com cerca de 1500 alunos e nove pólos em toda a ilha e Universidade da Madeira, com licenciaturas em Arte e Multimédia, Design, Design de Media Interactivos e Ciências da Cultura – quer o ensino livre – Gabinete Coordenador de Educação Artística, com 1.100 formandos e 21 grupos – também não comunicam entre si, têm programas de ensino conservadores que versam sobretudo a técnica em lugar do desenvolvimento do potencial criativo e, sobretudo no caso do Conservatório e da UMa formam profissionais especializados, músicos, designers, actores, artistas plásticos, mas esquecem-se de formar produtores, marketeers, técnicos de som e de luz, etc;
A título de exemplo, a Região – e o Conservatório – ainda não tiveram tempo, supomos nós, para transpor a Portaria do Ministério da Educação que cria o Curso de Artes do Espectáculo na vertente de produção, sendo a ausência de técnicos uma lacuna óbvia no panorama cultural regional.
Esta falta de técnicos, fruto da má orientação do ensino artístico, tem dois resultados vísiveis:
- Não se criaram públicos em mais de 30 anos de investimento;
- Não se criou um sector cultural e criativo minimamente profissional;
E porquê:
- Porque ao saírem das instituições que os formam, os jovens são rapidamente “enquadrados” nas instituições culturais existentes, que vivem maioritariamente de apoios públicos e que, por isso, preferem a política do “cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas” em vez da adopção de estratégias de desenvolvimento cultural efectivo.
Os nossos jovens criadores não são acompanhados no final da sua formação e, por isso mesmo, acabam por cair na tentação da repetição, mais fácil, no que no desafio da criação.
- Porque não existe, por óbvia falta de formação, um “universo cultural de acolhimento” – peço desculpa pela terminologia, que não será a mais correcta, ou seja, um leque de produtores, agentes, técnicos, que enquadrem, possibilitem e incentivem a criação. Não encontram ainda empresas dispostas a patrocinar ou apoiar eventos de cariz cultural, ou a apostar na criatividade;
- Continuando com o nosso belo hipopótamo, deixo-vos uma pergunta: para que serve o Tecnopolo? Cumprirá a sua função enquanto pólo criativo por excelência ou servirá apenas para a vetusta expomadeira e para mais meia dúzia de exposições e concertos? Não teria o tecnopólo, essa cara entidade, responsabilidade na matéria? Então foi concebido para quê? A ligação entre a UMa e o “tecno” – não, não é a música – existe? Em que moldes? Ou achavam as nossas autoridades que bastava construir um edifício e esperar que a criatividade brotasse das paredes como urtigas num campo de bananeiras? São perguntas que deixo porque desconheço as respostas.
Mesmo que façamos uma abordagem clássica ao tema, voltamos ao nosso rechonchudo guia, que continua a tentar equilibrar-se desajeitadamente sobre uns patins, ora caindo para a esquerda, ora caindo para a direita.
Partido do pressuposto, aceite comumente, que o objectivo de uma política cultural é aquele definido pela UNESCO, ou seja, devem incentivar-se as políticas de democratização cultural, que consistem em diminuir a distância entre criador e receptor, vemos que o Governo Regional tem falhado em toda a linha naquilo que tinha de fazer.
Em primeiro lugar, as políticas culturais não podem ignorar as palavras inovação e competitividade e assim sendo, é fundamental investir na qualificação dos:
- equipamentos, quer ao nível da sua conceptualização e construção quer, sobretudo, ao nível da profissionalização dos seus técnicos ou dos seus gestores. O que acontece na Madeira: temos centros supostamente culturais sem actividade porque:
- quem os gere não tem, muitas vezes, competência ou capacidade financeira para o fazer;
- Não têm técnicos porque, pura e simplesmente, os técnicos não existem por cá, fruto da já referida estratégia de ensino disfuncional;
- formação (parece que aqui já fizemos um relato exaustivo);
- profissionalização (mais uma área sobejamente vista nesta apresentação);
- território e valorização dos lugares (não se valoriza repetindo até à exaustão velhas fórmulas) ou limitando-nos a apoiar grandes eventos que, na pratica, não nos diferenciam enquanto região; E porquê:
- Porque a falta de formação dos agentes em áreas como algumas das supra-citadas impedem-nos de criar produtos exportáveis. Limitamo-nos a apresentar produtos feitos, em pacote, que cumprem o seu dever de atrair público externo, mas não somos capazes de criar produtos que, lá fora, vendam a Madeira ou a Cultura da Madeira. Neste aspecto, destaco apenas um momento nos últimos anos:
- A exposição Obras de Referência dos Museus da Madeira, em Lisboa, co-organizada pelo Dr. Faria Paulino e pela DRAC.
De resto, há um completo deserto…
As políticas culturais exigem, à partida:
- sistematização;
- planificação, concertação e parcerias entre os actores envolvidos;
- diagnósticos da situação cultural e dos públicos;
- avaliação das actividades e dos resultados;
Se no que respeita à sistematização, parece haver uma… sistematização (nem que seja da asneira), no que respeita à planificação, concertação e parcerias estamos conversados. Basta assistir à completa inexistência de coordenação entre câmaras municipais, DRAC, Direcção Regional da Juventude e restantes promotores, que permitem que os eventos aconteçam muitas vezes nas mesmas datas e em espaços quase contíguos para perceber a dinâmica…
Quanto ao diagnóstico da situação cultural, eu confesso que se existe, desconheço completamente.
Já agora, por cá é melhor nem falar em avaliação de actividades e resultados. Parece que é proibido!
Não queremos, de forma alguma, dizer que isto está tudo mal e que só nós percebemos do assunto. Há, na Madeira, um conjunto (pequeno) de produtores e ou criadores que, com o seu esforço, com o seu empenho e com algum engenho e arte têm apresentados propostas e projectos interessantes. Eu destacaria gente como o Francisco Faria Paulino, Maurício Marques, Henrique Teixeira, Rui Camacho, Eduardo Luiz, Henrique Amoedo. Gente que faz com que as coisas aconteçam, às vezes com apoios, outras vezes com muito boa vontade.
Mas a boa vontade não chega. É preciso mudar conceitos. É preciso colocar o conceito de Indústrias Criativas no centro da discussão e análise. Algumas propostas imediatas:

- Fazer um estudo macroeconómico para o Desenvolvimento das Indústrias Criativas, envolvendo:

- Secretaria Regional da Educação;

- Secretaria Regional do Turismo;

- Secretaria Regional do Ambiente e Recursos Naturais;

- Secretaria Regional dos Recursos Humanos;

- AMRAM;

- Universidade da Madeira;

- ACIF;

- Associação dos Jovens Empresários;

- ACS;

- Conservatório;

- Promotores Privados;

- Porquê o estudo:

- Pela necessidade de encontrar novos sectores de actividade, mais inovadores e com maior capacidade para servirem de interface entre os meios académico, cultural (criativo) e económico;

- Encerramento a Direcção Regional dos Assuntos Culturais, transformando-a em Direcção Regional do Património;

- Encerramento do Tecnopólo no actual molde e incorporação da instituição no Instituto Regional de Cultura e Indústrias Criativas, que funcionaria nos seguintes moldes:

- Conselho de Administração que inclua um elemento nomeado pelo Governo Regional, um elemento nomeado pela Associação de Municípios e outro pela Universidade da Madeira.

- Conselho consultivo que inclua os parceiros privados e outras instituições públicas e privadas como ACIF, a Direcção Regional de Juventude, o Conservatório, a Secretaria Regional de Turismo, a AJEM, a ACS, entre outros.

- Objectivos:

- Definir um plano estratégico para as indústrias criativas na Madeira a 10 anos;

- Coordenar as actividades culturais e a agenda cultural;

- “Vender”, através de uma estratégia de marketing concertada, os produtos culturais da Madeira e na Madeira, procurando desenvolver economias de escala, parcerias e patrocínios que permitam uma redução de custos objectiva;

- Gerir uma bolsa criativa;

- Envolver a UMa enquanto parceira activa no desenvolvimento de uma verdadeira Indústria Criativa;

Nota: O Instituto não representaria um aumento significativo de custos, uma vez que iriam ser utilizados os técnicos, os colaboradores e os meios da extinta Direcção Regional dos Assuntos Culturais não afectos à área do património edificado;

- Fundir, numa única instituição, o Conservatório e o Gabinete Coordenador de Educação Artística, libertando salas e meios;

- Redireccionar a política de ensino artístico para o desenvolvimento de competências em áreas como a produção e outras de cariz técnico;

É fundamental, em resumo, colocar o conceito de Indústrias Criativas no eixo central das discussões e debates sobre cultura.

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