Feliz Natal, Gregor

"Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso". Começa assim a "Metamorfose", de Kafka, revelando-nos Samsa e a estranha ocorrência que, ficámos a saber depois, só o preocupava na medida em que o impedia de seguir as rotinas diárias e a sua vidinha de submissão absoluta ao patrão, entidade a  quem atribuía todas as suas muitas desventuras e as suas poucas venturas. Kafka brinca connosco. Mostra-nos que em cada um de nós há um sr.GregorSamsa, um tipo sem coluna vertebral, pronto a de tudo fazer para tratar da sua apagada existência. Sem questionar, sem levantar problemas, sem se preocupar com factos mais concretos do que com o simples acto de vestir as calças todas as manhãs e sair, de chapéu na mão, pronto para a vénia. Kafka confronta-nos. Afronta-nos. A "Metamorfose" é tão verdade hoje quanto foi ontem. Samsa é tão real agora, numa ilha da qual nunca ouviu falar, como foi ao recusar-se a resistir ao fascismo e ao comunismo nos tempos das ideologias. Samsa continua servil, abjecto, medroso.

Continua com os braços em baixo à espera de servir-se do pequeno quinhão deixado pelos que se servem. "Estás atrasado, Samsa," pensa todas as manhãs de todos os dias. "Não te preocupes com a crise. Não enfrentes os que a causaram. A crise é no mundo e aqui dizem-te para não ter medo, Gregor. Não tenhas. Não resistas. Não causes problemas. Não te alistes. Limita-te a acordar, Samsa. Não vivas. Não escolhas. Quem quiser que o faça. Não afrontes. Não confrontes. Não defrontes" . Feliz Natal, Gregor Samsa.

Artigo publicado na edição de hoje do Diário de Notícias da Madeira.

Comentários