Curto relato de um regresso a Madrid

Yo puedo decir muchas cosas,
Y algunas no.
No puedo decir: Madrid es mi tierra
Tengo que decir mi cemento,
- y lo siento-.


Glória Fuentes



Madrid não é velha, como Lisboa ou Barcelona. Madrid é quase jovem e por isso não tem muitos segredos. Madrid é a imagem do orgulho de Espanha, feita no auge do império, terminada de forma quase absurda no ocaso da grande Espanha, sendo por isso um hino à glória e à decadência da mais fascinante potência que da Europa emergiu.

Talvez por isso Madrid seja, quem sabe, a representação simbólica mais evidente daquilo que foi, que é e que será Espanha, velha senhora rica, servida por criados de libré carregando vazias bandejas de prata num rodopio constante. Uma orgulhosa senhora capaz de renascer todos os dias percebendo claramente que entre o passado e o futuro há um ténue e pouco significativo momento presente.

Madrid é pois passado e futuro, mas não é presente. Madrid é como um poema de Borges em que o tempo é um eterno retorno sendo o real não mais do que um simulacro, ou uma máscara. Os madrilenos não existem, são personagens dos textos do argentino.


El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges

São, desgraçadamente, madrilenos não sendo portanto coisa nenhuma.

Madrid será ela própria tudo e nada. Uma fortaleza de pedra do meio da paisagem quase desértica de Castela. Um mundo irreal (voltando a Borges, interpretando o irreal como o princípio básico da condição da arte).

La irrealidad es condición del art, condição sem a qual era impossível criar a Gran Via, densa mistura de estilos e de formas que competem entre si e que convergem à Praça de Espanha, onde por trás de Quixote e de Sancho Pança ergue-se um dos maiores monumentos à irrealidade na Europa, o gigantesco edifício Espanha, hoje completamente fechado, crescendo desafiante sobre o tempo e os homens.

Uma cidade sem terra povoada por milhões de gentes sem terra que se acotovelam mal cai a noite na Gran Via, na Praça Callao, no Mercado de San Miguel, nas Portas do Sol. Que se acotovelam durante a tarde no Retiro. Multidões que percorrem a cidade fazendo do trânsito pedonal uma aventura quase tão caótica como o trânsito automóvel. Multidões irreais que enchem os bares e cafés, todos os dias, todas as noites, sem um único propósito visível que não o de celebrar a condição gregária que caracteriza Espanha.

Multidões que à noite dão vida a todos os bares do Bairro das Letras, da Chuenca, de La Latina, que vagueiam eternamente de um para outro com a perfeita noção de que o presente é apenas um hiato entre o que foi e aquilo que será, entre a recordação e o desejo.

Em Madrid não há lugar à calma ou à contemplação.

Madrid é um sonho de cimento e de mármore, bem representado no Palácio de Cibeles, onde voltam a conviver muitos estilos, onde cadeiras vermelhas contrastam com o ferro e com o branco marmório. Onde novas escadas transparentes reinam sob a abóboda em vidro “art noveau”.

Madrid é a condição expressa no Círculo das Belas Artes, onde Lorca, Buñuel, Ortiz, Jiménez entre outros tantos que Franco matou ou separou se sentavam em cadeiras de arte nova para discutir a poesia e a guerra, o cinema que nascia e os contínuos aumentos do preço do pão e onde Eva Loodz cria hoje mesmo um monumental hino ao novo e ao futuro da arte.

Madrid é de pedra na Praça Mayor, eternamente vigiada por Filipe, que conquistou Portugal e os Países Baixos e que tudo jogou, e tudo perdeu, nas escuras águas da Mancha. Madrid são as pinturas da Casa dos Padeiros no extremo este da Praça, que de tão novas parecem velhas.

Madrid são as pinturas negras de Goya, que o Prado mostra com orgulho. A Procissão do Santo Ofício, El Perro, Saturno Devorando um Filho, o 3 de Maio - onde a noite atribui à tragédia e ao heroísmo as proporções épicas necessárias. Madrid é o Cristo Crucificado de Goya, culto do corpo nú, Cristo sem sangue, sem imagens evidentes de sofrimento, olhando em êxtase o futuro que adivinhava num reino que seria só seu.

Madrid é o Parque do Retiro sem silêncio – porque a cidade não admite o silêncio - é o bom gosto dos cafés da Castelhana e da Praça Cibelles, é o exagero quase barroco do fantasmagórico Palácio da Zarzuela e da catedral de Almuneda, contrastando com a branda beleza da fachada da Basílica de São Miguel, carregada por dentro com a representação de todo o ouro e de toda a prata do mundo.

Não, Madrid não mata uma vez. Em Madrid, a morte é também ela figurada. Madrid mata todos os dias. Mas todos os dias volta a fazer renascer. Todos os dias, Enrique Bayano, o poeta da Gan Via, senta-se em frente à casa do livro e desafiando o trânsito, oferece a quem passa, com voz de barítono bêbado, poemas como este:


Yo soñé que soñava
Dentro de un sueño outro sueño
Dentro del sueño tú estabas
Estabas en esse sueño tan bela, tan lozana
!tu cara, tu pelo, tu sonrisa!
Tus ojos de mistério que me atraen una loucura
!quando sueño contigo
Me llena de orgulho la vida!
Porque éres tú niña e mujer
Esa mujer de verdade
Que roubas mis pensamientos
En mis horas de soledad
Los días van passando
Yo, me sigo enamorando
Mucho más que en el primer día
Si, mucho más, niña mía
Esperando que llegue el día
Que te sinta sólo mia
!De este sueño
yo, no quero despertar...!


É assim Madrid. Como yo lo veyo.

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