A Cama de Hegel

Era uma vez um sítio onde o futuro não existia. Ao início era simples, os homens deitavam serra pelos olhos, e as mulheres deitavam serra pelos olhos, e os homens deitavam mar pelos olhos. Comandando estavam os padres, e o exército, ou os colonos, e os padres, os políticos, ou o exército, não interessa quem estava comandando. Nunca um traço largo. Deitava-se serra pelos olhos, ou mar pelos olhos, e fazia-se coisa pequenas com as mãos, ou com os dedos. Bordado, no ponto mais pequeno que houvesse. Bordado, na serra com uma enxada. A vista curta, as costas arqueadas, cavar a levada por aí fora. O horizonte não existe, o futuro não existe, só cavamos por aí fora. Não nos cabe a nós ver o desenho que o nosso traço forma. Lá fora houve uma revolução, mas Napoleão não mandou ninguém. Lá fora houve uma revolução mas os liberais não mandaram ninguém. Houve quem gritasse 'a terra a quem a trabalha', mas ninguém ouviu. Nem podia. A terra não é de quem a trabalha. A terra é o poio. E o poio é de quem fizer 2 horas de vereda com uma enxada na mão para lá chegar. A deitar serra pelos olhos. Esta noite às quatro da manhã há água de rega. Salazar morreu mas ninguém ouviu. Nem podia. Em casa as mulheres fazem as contas: tiveram 10 filhos, 3 morreram, 2 emigraram. Tiveram 12 filhos: 2 morreram, uma é freira, um é sobre-si. Tudo é contabilizável. Porque é presente. O futuro não existe. Disseram para votar. Disseram-lhes para votar. E eles votaram. Nos padres, nos colonos, no exército, em quem estava comandando. Votava-se em quem estava comandando. Ou não, mas isso como um acto de desespero, quase como um grito. Hegel dormia e já nem ele sonhava com o fim da história. Como se a história fosse a lava de um vulcão furioso. Arrefecendo e esquecendo-se de si.

Filipe Ferraz

Publicado no Diário de Notícias (Madeira) de hoje

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