Desabafo (antes das nove da manhã)





Um desabafo escrito num telefone móvel moderno às 10 para as nove da manhã:

Ainda não são nove horas. No centro da cidade, há gente que se estica para receber o Jornal da Madeira que dá à capa um Jardim de outros tempos, que gesticula e grita como se ainda fizesse parte do amanhã. Há qualquer coisa de irreal no cenário. A manhã está bonita, com um céu aberto sobre todos nós. A avenida quer-se sofisticada, uma promenade parecida com as de uma Europa a que só por um acaso pertencemos. Uma passagem sob jacarandás, que a seu tempo florescem. Mas na capa de um jornal que é nosso, alguém gesticula, grita, berra, abafando os sons e as cores e os cheiros verdadeiros da manhã. Abafando o azul e o verde e as conversas da gente que passa e o café quente da esquina do mundo. Na capa de um jornal que é nosso, alguém gesticula, grita, berra. O som é fundo. Ecoa sobre as nossas penas. Rouba-nos o futuro. Lembrei-me do Filipe, da Bárbara, da Maria, do Cláudio, do Pedro, gente de quem eu gosto e que saiu à procura do futuro. Lembrei-me de que também eu, um destes dias, terei de fazer o mesmo. Entretanto, na capa do Jornal da Madeira, alguém gesticula, grita, berra, agarra-se ao verbo escrito no passado. Sob um céu azul que se deveria abrir para todos nós.

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