Opinião (Tombe la neige)

Ontem nevou em Lisboa e foi bonito. Parecia que a capital se tinha transformado numa daquelas cidades dos países desenvolvidos, onde há neve e limpa neves e tipos com o carro meio enterrado num manto branco de não sei quantos centímetros e senhoras louras muito bem postas a apresentar o telejornal e a noticiar vagas de frio.

Fiquei contente e imaginei que a troika, que vem dos países frios, como toda a gente sabe, já tinha partido, deixando-nos como recordação um belo tapete de neve como os outros têm, no qual poderíamos fazer bonecos com cachecol. E bolas, para tentar mutilar-nos uns aos outros. A brincar, pois claro. E que a partir de agora enregelados, quase suecos, arrancaríamos fulminantemente rumo ao futuro, de luvas calçadas, gorro na cabeça, sobretudo por cima da “manga curta, colorida”, como cantava o Fausto, porque “o calor que era dantes também farta”.

Poderíamos arrancar, quem sabe, abordo de um autocarro da Carris. Num daqueles que ontem tentavam não derrapar sobre o gelo novo.

Nevou em Lisboa e foi bonito.

Parece que a troika se va de verdad. Deixará, ao de leve, a leve neve? Passaremos a cantar em inglês no Festival da Eurovisão? Jogaremos futebol como quem joga matraquilhos, com tipos estáticos mas bem postos em campo? Substituiremos os pastéis de bacalhau por coisas mais gourmet, com belos nomes em francês? Seremos alvo de um processo de rápida e adequada normalização e higienização? Who knows...

Como canta o Gilberto Gil, nestes dias “andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar”, mesmo que a fé esteja, ela própria, “a morrer”. Ressuscita sempre, não é, Gilberto?

Se tivermos fé, fica a neve e ficamos nós.

Mas será o preto Gilberto compatível com a branca neve? Será a fé do Gilberto mais forte que a leve neve, porque mais preta, mais tropical, mais ritmada, mais intensa? Será que o calor que é nosso cansa mesmo, Fausto? Queremos todos partir? Por ela, por nós, por Santiago, Fausto? Partirá a troika e deixará branca a neve? Deixará pedra sobre pedra sobre a camada do boneco com cachecol?

Vamos andar com fé, não é, Gilberto? Porque tu dizes bem, ela não costuma falhar. Não a neve. Nem a troika ou sequer a perestroika. A fé. É ela, a fé, que não costuma falhar. É essa a fórmula, não é, Gilberto?

Ontem nevou em Lisboa. Foi bonito e eu fique contente.

Publicado na edição de hoje do Diário de Notícias da Madeira

Comentários