Tarefas necessárias

A decisão, e sobretudo a forma como foi comunicada, de despejar as cinco instituições culturais e de cariz social que têm as instalações no edifício da Travessa das Capuchinhas só é possível porque falamos da área cultural.

Passo a explicar, antes que me comecem a atirar pedras. Se no prédio em causa estivessem sedeadas, por exemplo, instituições desportivas, ou uma associação comercial, o Governo não teria, certamente, lidado com a questão com a sobranceria e com a arrogância demonstradas sexta-feira.

Esta constatação é reveladora do estado a que chegámos. Na Madeira, os agentes culturais não são levados a sério. Ontem, numa animada tertúlia em que participavam, entre outros, o Nuno Morna, o Rui Alberto Camacho, o Filipe Ferraz e a Marta Silva, debatemos a questão e mesmo com algumas diferenças de opinião, coincidimos todos nesse ponto.

Não são levados a sério por várias razões. Em primeiro lugar, porque quem governa há 38 anos nunca percebeu a função da cultura e das práticas culturais e criativas.

A cultura foi sempre, ou quase sempre, vista na perspectiva de complemento do produto turístico. Foi sempre, ou quase sempre, encarada como um produto para os "outros", para os visitantes, e não para nós.

Reparem que a Direcção Regional de Cultura esteve quase sempre integrada na Secretaria Regional do Turismo, o que não é uma questão de somenos importância, porque representativa da estratégia supra-citada.

Houve trabalho feito na recuperação do património, é verdade. Houve trabalho feito na formação, também é verdade. O modelo seguido na formação foi o mais correcto? Tenho muitas dúvidas nessa matéria.

Se quem governa não percebe o papel da cultura ou só o entende parcialmente, não pode perceber o papel dos agentes culturais.

Nem entenderá, como é óbvio, que a cultura e as práticas criativas são uma actividade económica como outra qualquer. Com especificidades como outra qualquer. Que gera emprego como outra qualquer. Que contribui para o PIB como outra qualquer. Esse é o foco da questão.

Muitas vezes, os próprios agentes culturais têm um discurso hermético. Falam da importância da cultura para o desenvolvimento social. Mas falham quando se esquecem de pôr em cima da mesa de jogo a importância económica do sector, o número de empregos que cria e o desemprego que opções políticas desastradas muitas vezes cria também.

Se quem governa não entende e quem trabalha na área não utiliza todos os argumentos à disposição, cria-se um problema de comunicação quase intransponível.

Mas existem mais factores críticos. Quem governa há 38 anos fez na cultura aquilo que fez em todas as áreas: - distribuiu prebendas a troco de silêncio ou de cumplicidade. Parte central da estratégia de controlo de poder cá na terra foi o pagamento do silêncio. Temos assim mais um dado para juntar à equação. 
A estratégia não funcionou com todos os agentes culturais, se calhar não funcionou com a maioria, mas funcionou com alguns, que eram simpaticamente passeados, com a coleira devidamente colocada, pelos salões do poder, controlados por comissários políticos, muitos deles incapazes de perceber que entre cultura e agricultura há uma diferença que não é só de semântica.

A trela não dignifica. Não dignifica quem a aceita. Não dignifica quem a (im)põe. Mas contribui para generalizar uma imagem de submissão e docilidade que se estende injustamente à maioria.

Resumidamente, temos um poder que não entende o papel na cultura nas suas múltiplas dimensões, que compra silêncios, e temos um grupo de pessoas que muitas vezes dá a imagem de estar a pedir favores quando na verdade está a negociar e que por isso deveria apostar na estratégia win-win.

O que há a fazer então? Bem, em primeiro lugar, parece-me higiénico "correr" com quem governa. Fará bem à saúde pública. Será um ato de bom gosto e de bom senso.

Em segundo lugar, os agentes culturais devem procurar estar mais unidos em torno das questões essenciais, sendo a mais importante a dignificação, a todos os níveis, de quem trabalha na área, faça o que fizer, tenha o talento que tiver.

Não sei se o caminho passa pela via burocrática da associação. Não sei de que maneira os agentes culturais podem constituir-se num grupo de pressão, capaz de influenciar os decisores, a todos os níveis, mas é importante encontrar a forma e a fórmula de começar a percorrer um caminho obrigatório.

Porque infelizmente, o problema não é apenas de quem governa. O problema estende-se a todos os partidos e à sociedade em geral. Se é preciso mandar quem governa fazer outra coisa qualquer, é também necessário sensibilizar quem pode ser poder no futuro, ou quem pode influenciar o exercício do poder futuro, para a importância do sector.

É ainda urgente sensibilizar a população. Mostrar que os agentes culturais não são uma espécie de pedintes, que oneram o erário público e aos quais, numa imagem medieval, se devem dar os restos da mesa dos senhores. Explicar que pelo contrário, são gente que trabalha, que cria, que produz riqueza, que gera emprego, que contribui para o desenvolvimento a todos os níveis, que contribui para o turismo, que contribui para a projecção da imagem externa da Madeira e que, no limite, nos faz a todos muito mais felizes.

Ajudar a expulsar quem governa, unir-se em torno das questões essenciais e criar loby, comunicar melhor entre si e para o exterior, vender melhor a cultura e explicar aos madeirenses o papel do sector, são tarefas pesadas. Mas devem ser possíveis, sob pena de tudo mudar, para tudo ficar na mesma.

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