O Retorno



Nunca tinha lido a Dulce Maria Cardoso. Li agora O Retorno, que não hesito em classificar como um romance admirável, eventualmente, um dos melhores livros escritos em Portugal este século. Uma obra que aborda magistralmente a descolonização, esse momento traumático que só há poucos anos começou a ser tratado pela literatura, pela arte e pela própria historiografia portuguesas.

Rui, o narrador, um jovem adolescente nascido em Angola, é obrigado a transferir-se com a família para Portugal -"metrópole", que pouco mais era do que um espaço imaginado, mítico, onde havia cerejas.

Cerejas grandes e luzidias, que as raparigas põem nas orelhas, a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser.

Instala-se, com a mãe e a irmã, num hotel lotado por famílias como a sua. Instala-se numa "metrópole" que afinal é um sítio pequeno, pobre, atrasado

Portugal não é um país pequeno, é um império do Minho a Timor. A metrópole não pode ser como hoje a vimos no caminho que o táxi fez, ninguém nos ia obrigar a cantar hinos aos sábados de manhã se a metrópole fosse tão acanhada e suja, com ruas tão estreitas onde parece que nem cabemos.(...) Não, a metrópole não pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal não é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o império apanhava da Europa, um império tão grande como daqui até à Russia não pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas, tão sem serventia que nem para a morte têm interesse.


Num país que é afinal desconhecido e que também desconhecia quem chegava, temendo o novo, marginalizando os seus que se haviam feito ao mar e que agora, quais náufragos de um império que afundara, regressavam agarrados ao pouco que sobrara. Náufragos de império que terminava encerrado em contentores fechados, guardados no mesmo porto onde tudo começara.

Em O Retorno, Dulce Maria Cardoso mostra os tempos da perda, da revolta, da decepção, da resignação e do renascer da esperança que começou a ser materializado através da diluição dos retornados na sociedade portuguesa.

Mostra o quão desconhecido era Portugal para os próprios portugueses que viviam no ultramar, da mesma forma que as colónias não eram mais do que territórios míticos para quem aqui ficara.

Mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes (...), mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda

escreveu Eduardo Lourenço, explicando assim as consequências do fim do império para o imaginário português. Hoje, ainda procuramos perceber quem somos, quarenta anos após o 25 de Abril. A literatura poderá dar o seu contributo para a definição de um imaginário colectivo, libertando fantasmas há muito encerrados.

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